segunda-feira, 26 de julho de 2010

Da beira do rio para a caixa de fósforo



por Felipe R. Spack
http://diretodeesquerda.wordpress.com/

Uma excelente reportagem da jornalista Paola Carriel publicada na Gazeta do Povo de hoje dá uma noção bastante precisa do que é racional e do que é irracional na questão habitacional curitibana. Segundo a reportagem, desde 2007 a Cohab de Curitiba reassentou cerca de 1,8 mil famílias que moravam nas beiras dos rios da capital. As famílias viviam um duplo problema: em primeiro lugar, tinham levantado suas casas em áreas pertencentes a terceiros, e por isso moravam irregularmente; em segundo lugar, tinham escolhido justo as áreas ambientalmente mais frágeis para construir – aquelas localizadas a poucos metros da beira dos rios e córregos. Devido à sua vulnerabilidade ambiental, a legislação brasileira proíbe a ocupação dessas áreas, consideradas de “preservação permanente”, com o intuito de resguardar tanto a saúde das famílias quanto a qualidade das águas.

O plano de reassentamento da Cohab, em grande parte financiado por verbas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), consiste na retirada das famílias, demolição das casas irregulares e transferência dos ocupantes para conjuntos habitacionais construídos pela Companhia. Depois de assinarem contratos com a Cohab, as famílias podem se mudar para as novas casas, e só começam a pagar seis meses depois. Os imóveis têm um valor de cerca de 30mil reais cada, e a prestação é de até 10% do valor da renda familiar. Para a Cohab, o valor pago é “simbólico”, e ajuda a construir um “sentimento de pertencimento e construção de patrimônio”. A Companhia não indeniza as famílias pelas casas demolidas.

Embora a reportagem seja bastante clara, ela só pode ser inteiramente compreendida se o leitor se dedicar a uma inversão radical de perspectiva: entender a ocupação irregular de áreas verdes não como um problema, mas como uma “solução” encontrada pelos moradores naquele momento de crescimento da cidade de Curitiba. Normalmente, tendemos a pensar que invadir áreas nas margens dos rios é a decisão mais irracional possível a ser tomada por uma família. É por isso, aliás, que a relocação feita pela Cohab parece racional e justificável: em tese, ela reordenaria o espaço urbano, trazendo qualidade de vida para todos. Mas será que todas as 11.200 famílias curitibanas que moram nas beiras dos rios são “irracionais”? .

Invasão racional

Talvez pudéssemos ver o problema de outra maneira: e se as ocupações irregulares das áreas de preservação forem escolhas perfeitamente coerentes, feitas por pessoas tão racionais quanto os leitores da Gazeta do Povo ou os blogueiros amadores? Por exemplo: invadir e permanecer em uma área abandonada parece ser perfeitamente justificável quando não se tem dinheiro para pagar o aluguel – afinal, ou o morador paga o aluguel e não alimenta os filhos, ou ocupa uma área e pode ficar com uma porcentagem maior do próprio salário para a sua família.

Há ainda outros fatores que tornam a ocupação irregular uma escolha muito consistente. A proximidade do centro e dos serviços públicos é um deles. Talvez seja melhor morar na margem do rio em uma favela como a Vila Torres II, a poucos minutos do centro, dos hospitais e das escolas públicas, do que viver nas Moradias Sítio Cercado IV, construídas pela Cohab quase 16 quilômetros mais longe para abrigar os moradores removidos daquela vila. Além disso, o tamanho das casas vendidas pela Cohab é absurdamente pequeno: a maioria não passa de cubículos de 28 metros quadrados destinados a famílias de quatro integrantes em média, com infraestrutura precária e sem qualquer acabamento. Para se ter uma noção, apartamentos de um quarto no centro da cidade, geralmente ocupados por uma ou duas pessoas, têm em média 60m². As casas em áreas irregulares, ao contrário, geralmente foram construídas pelos próprios moradores, e em alguns casos atingem até 100m². Muitas delas são bastantes superiores, inclusive tecnicamente, aos imóveis vendidos pela Cohab.

Por fim, fazer um contrato com a Companhia de Habitação de Curitiba é sempre uma empreitada de risco. Em fevereiro deste ano, o Superior Tribunal de Justiça anulou cerca de 37 mil contratos fraudulentos firmados durante a década de 1990 pela Cohab com famílias de dezenas de vilas da Cidade Industrial de Curitiba. Os moradores que quitaram os contratos, pagando valores entre 5 e 10 mil reais ao longo dos anos, jamais receberam as escrituras devidas, e tampouco viram o dinheiro retornar sob a forma de investimentos públicos em seus bairros. Não há garantias que a Cohab não repita o mesmo erro nos novos loteamentos que tem construído.

Dessa maneira, fica cada vez mais claro que os “invasores”, na verdade legítimos ocupantes, são perfeitamente racionais. O que é irracional é que, enquanto há 56.300 mil imóveis vazios em Curitiba, grande parte deles no centro, a política de habitação de Curitiba continua sendo a de construir casas de má qualidade em locais distantes a um elevado preço – pois 10% da renda de quem ganha de 0 a 3 salários mínimos certamente não é um “valor simbólico”. O absurdo de tudo isso é, inclusive, evidenciado pelo mapa que integra a reportagem de Paola Carriel: praticamente todos os moradores relocados pela Cohab foram removidos para locais mais distantes do centro do que as vilas originais.

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